domingo, 23 de novembro de 2008

RESSURREIÇÃO

Na fria noite
Da cidade grande
Sob a marquise dormem
Um velho, um menino e um cachorro

Sobre pedaços de papelão
Suave colchão

Zunindo em tropel de cavalaria
Passam carros projetando luminosas cores
Rumo aos úteros da noite


Na calçada
Pétrea
Namorados, bêbados, turistas
Advogados, porteiros, travestis, prostitutas
Garçons, oftalmologistas
Protestantes, balconistas e maçons
Seguem em procissão

Passam todos
Caudaloso rio de carnes com botões
Celulares, canetas, carteiras, cigarros
Acesos
Pontinhos pirilampos


E óculos para longe
Para perto

Lentes sem contato


Ninguém percebe os três corpos
O do velho, o do menino, o do cachorro
No papelão
Sob a marquise da cidade grande
Fria
Dentro da noite anônima

Asfáltica.

Mas eis que amanhece

[Sempre amanhece
Mesmo que não haja sol]


Honey Bee Blue
A noite se foi
A Lua se apagou

E o velho
Zarolho
Fita o menino
Com seu único olho
Deep blue

Sorriem

O cachorro ressuscita
Levanta-se sobre as quatro
Pernas cambetas
E balança o rabo quando os vê.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Chovera durante aquela tarde de sábado. Uma chuva fina de dia de Finados. Uma chuva em spray, quase névoa. Se fosse musical, seria em adagio.


À noite, fui ao assistir a um concerto; Sinfonia número 2, de Beethoven. E levei meu guarda-chuva, esse negro e magro companheiro que nos abriga feio um teto ambulante.


Já no salão de espera, antes da abertura da porta do teatro, percebo que entre a multidão de espectadores ninguém levara guarda-chuva. Era eu o único, entre tantos, a carregar aquela figura macabra, muito própria para enterros e derivados. O cabo do dito cujo pesava toneladas no meu braço. Era como portar um cadáver em público. Um defunto de luto.


Terminado o concerto, sai caminhando pela rua, pisando no negrume do asfalto iluminado pela luz do luar. O céu estava luminoso all blue, e repleto de estrelas.


Eu e o guarda-chuva; nossa imagem se movia ao som de "You Shock Me", de Willie Dixon, o poeta dos blues.


segunda-feira, 10 de novembro de 2008

BALADA DA BALA PERDIDA

A bala perdida
É a louca fugida
Do manicômio
No meio da noite

Desvairada, rompe
Relâmpaga
O Blue Velvet da escuridão
Súbita assombração

De dia
É um sol concentrado
Tórrido grão

Percorre, em fio
O pavio
Tênue da luz.

Bêbado pássaro
Sem rumo, sem bússola
Não tem passaporte
Nem sul ou norte.

A bala perdida
É uma bomba atômica portátil
Volátil serpente

Embora vesga e demente
Sempre acerta
Apaga o brilho do olhar
Sempre, sempre

Chega como chega a morte
Sem avisar
Sem bater na porta
Nem pedir licença.

A bala perdida
É o lado avesso da reza
A realização da praga rogada

Decreta ela, inclemente
Que se faça mudo qualquer riso
E se petrifique o sorriso

A qualquer hora crepuscular
Ou do pleno dia

No centro da noite
A qualquer instante
A bala perdida nos encontra
Sempre e sempre.